sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Sobre o socialismo

Ruy Mauro Marini
Fuente: Archivo de Ruy Mauro Marini con la anotación "(1991-1992)".

I - O SOCIALISMO COMO PROCESSO HISTORICO

A crise a que ingressaram, na segunda metade da década passada, a maioria dos regimes socialistas pode ser objeto de duas considerações. A primeira consiste em não perder de vista que ela é parte de um processo teórico e prático, no qual se articulam os diferentes movimentos que, no plano das idéias e da luta social e política, realizaram a crítica do capitalismo, como modo de organização das relações humanas. De Sismondi à esquerda ricardiana, de Owen a Marx, de Kautsky e Hilferding a Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Gramsci, a teoria socialista pôs a nu os fundamentos da economia capitalista e da sociedade burguesa, evidenciou sua perversidade estrutural e a expropriação do trabalho social que elas propiciam, armou ideologicamente os povos que lutaram contra isso. E foram muitos esses povos, desde os operários parisienses de 1871 e os bolcheviques russos até as massas espoliadas da China, de Cuba, do Vietnam, de Angola e da Nicaragua.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A Constituição de 1988


Ruy Mauro Marini
Fuente: Archivo de Ruy Mauro Marini con la anotación "inédito".

A luta contra a ditadura militar, tal como se desenvolveu a partir das eleições de 1974, enquadrou-se ideologicamente no binômio autoritarismo-democracia. Do ponto de vista doutrinário, a fonte de inspiração desse binômio é a distinção kelseniana entre dois modos de produção da ordem jurídica —autônomo e heterônomo— cuja essência reside no fato de a lei ser ou não resultado da ação daqueles aos quais se aplica. Do ponto de vista político, esse binômio permitiu encobrir o caráter de classe dos combates travados contra a ditadura e —desviando-os do enfrentamento direto ao bloco burguês-militar, como era o caso antes de 1974— reduziu-os à crítica abstrata do autoritarismo, bem como, concretamente, dos seus efeitos econômicos e sociais. Isso levaria, na prática, a vincular as lutas populares ao movimento contra a estatização lançado pela burguesia e, progressivamente, a legitimar a hegemonia desta no bloco opositor, por um lado, assim como, por outro, a fixar como objetivos centrais deste bloco a afirmação dos princípios da democracia liberal no plano jurídico e institucional.
A Constituição de 1988 —como, antes dela, a campanha pelas eleições diretas— foi o fruto natural desse processo. Numa ampla medida, ela restabelece o caráter autônomo da ordem jurídico-institucional brasileira, apesar das impurezas e limitações que a vida lhe impôs. De fato, em sua origem, ela não nasce de uma assembléia constituinte soberana, eleita especificamente para esse fim, mas da outorga ao Congresso Nacional de poder constituinte amplo por um governo de legalidade duvidosa —o que explica, por exemplo, que alguns constituintes não tenham sido eleitos enquanto tais, sendo apenas senadores com mandato vigente que a constituinte congressual cooptou. O próprio processo eleitoral de que resultou a Constituinte cerceou a possibilidade de uma autêntica representação popular, ao não contemplar a eleição de candidatos avulsos, propostos pelas organizações sociais e de classe e pela cidadania em geral, em benefício do sistema partidário artificialmente imposto pela ditadura; a aceitação de emendas de iniciativa popular, determinada posteriormente pela Constituinte, foi uma tentativa de compensar esse vício de origem. 
A conjuntura particular em que se realizaram as eleições de 1986, signadas pelo Plano Cruzado, contribuiu, por sua vez, para deformar a configuração da representação política na Constituinte, ao conferir esmagadora maioria ao partido da burguesia opositora —o PMDB— no governo, desde o ano anterior, mediante eleiçôes indiretas que consagraram a recomposição do bloco burguês-militar. É natural, portanto, que, apesar de um ou outro assomo de independência, a Constituinte desenvolvesse seus trabalhos dentro do quadro institucional heterônomo surgido em 1964, isto é, sob a pressão de um executivo centralizador e a tutela do quarto poder de que se haviam investido as Forças Armadas. É natural, também, que, no cumprimento de sua missão de recolher, harmonizar e subordinar à burguesia as aspirações e os interesses das forças sociais presentes na sociedade brasileira, a Constituinte recorresse ao arsenal jurídico proporcionado pela teoria política burguesa.
Liberalismo e autoritarismo
No estudo dessa teoria, é usual tomá-la como um todo relativamente homogêneo, resultado das contribuições parciais de diferentes pensadores. Na realidade, ela conforma três vertentes claramente diferenciadas e numa ampla medida contrapostas, embora tenham como denominador comum a defesa da dominação burguesa e de seus interesses de classe. É em função dessa diferenciação que há mais afinidade do contratualismo de Hobbes com o historicismo de Hegel, que pontificam na vertente autoritária, do que, por exemplo, com o contratualismo de Locke, expoente da vertente liberal, do mesmo modo como há um abismo entre o conceito de contrato nessas duas vertentes e o que informa a concepção democrática de Rousseau.
O eixo dessa diferenciação é a relação entre o Estado, expressão por excelência do poder, e a sociedade civil, entendida como a esfera da economia e das classes sociais, relação que tem seu ponto nodal na questão da origem e do exercício da soberania, tomada como poder supremo. Ainda que, para Hobbes, Locke e Rousseau, a soberania seja, por definição, atributo essencial do povo, eles diferem quanto à capacidade de delegação de que pode ser objeto o Estado, capacidade que é absoluta para Hobbes, limitada e condicional para Locke e praticamente nula para Rousseau. É por isso que, enquanto Hobbes vê a sociedade civil desamparada ante o Estado, Locke (e, depois dele, Montesquieu) procura circunscrever a ação e coibir os abusos do Estado mediante a separação de poderes e as limitações e controles que estes exercem entre si. Nos extremos, Hegel —para quem o Estado é a etapa superior do desenvolvimento histórico, na qual a sociedade civil se realiza e se resolve, superando em proveito do interesse geral os interesses particulares e corporativos que lhe são próprios— recupera o totalitarismo hobbesiano, reduzindo a divisão dos poderes do Estado a um mero expediente funcional; e Rousseau, radicalmente distante da vertente autoritária, rechaça também o liberalismo, ao conceber um Estado comissário, mero executor da soberania que o povo exerce diretamente como vontade geral e da qual é expressão a lei.
A tradição constitucional brasileira, gestada no seio da teoria política burguesa, tem como influências determinantes a corrente autoritária, primeiro, e a liberal, depois. A Constituição monárquica nasce da outorga real, sendo expressão, portanto, do poder soberano do monarca, que nela é, por sua vez, consagrado como quarto poder do Estado, preeminente aos três poderes habitualmente definidos pelo liberalismo; com isso, a existência de três poderes subalternos significou apenas um expediente de caráter funcional, no sentido que lhe dá Hegel. Os desenvolvimentos posteriores do Estado monárquico e seu sistema de governo, a partir de 1834, não modificaram essencialmente essa concepção, a própria adoção do parlamentarismo tendo-se destinado apenas a permitir o exercício mais moderno —ou, se se prefere, mais europeu— do poder absoluto do monarca. O escravismo sobre o qual repousa a sociedade brasileira da época não pode ser ignorado como fator determinante para a existência desse tipo de Estado.
A primeira constituição republicana, ao mesmo tempo em que expressa de maneira mais clara a concepção liberal, não rompe radicalmente com a inspiração autoritária que presidiu à formação do constitucionalismo brasileiro. Sua origem mostra já o caráter transacional que é o seu: aprovada em tempo récorde por uma assembléia constituinte restrita (a restrição mais importante sendo a proibição de voto aos analfabetos, que excluía a imensa maioria do eleitorado potencial), ela resulta de um projeto baixado por decreto pelo governo militar provisório. Nessa perspectiva, a adoção do princípio liberal da divisão de poderes não implicou uma ruptura de fato com a ordem anterior, dando origem ao presidencialismo exacerbado (chamado significativamente por alguns de "presindecialismo imperial") que passa a caracterizar o Estado brasileiro e que funde na figura do presidente da República os poderes executivo e moderador. Não falta quem sustente que, na realidade, o poder moderador reside na prerrogativa presidencial de —enquanto chefe das Forças Armadas— encarnar o princípio essencial do Estado, isto é, o monopólio da força, o que levou a tendência mais reacionária do constitucionalismo brasileiro a considerar que esse poder reside de fato nas próprias Forças Armadas.
Esta idéia emergiu de maneira explícita quando a ditadura militar buscou sua institucionalização. As constituições militares não ousaram, porém, romper com a tradição liberal, limitando-se a enfeixar nas mãos do presidente uma enorme soma de atribuições, e foi por via indireta que o princípio do quarto poder se fez presente nelas. Ele aparece já na missão atribuída às Forças Armadas, que não se destinam apenas à defesa nacional, mas também à "garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem". Mas a novidade fica por conta do novo papel de que elas investem o Conselho de Segurança Nacional: apesar de ser definido como órgão de assessoria do presidente da República, são de sua competência decisões imperativas, cabendo-lhe especialmente "estabelecer os objetivos nacionais e as bases para a política nacional". Mais além do plano estritamente constitucional, o sistema institucional da ditadura converteu em elementos do quarto poder os colégios corporativos militares, em particular os estados-maiores e os corpos de oficiais, assim como o Serviço Nacional de Informações. Recordemos, de passada, que, junto à acentuação do debate sobre o poder moderador e sua relação com as Forças Armadas, assistiu-se, no governo Médici, a uma intensa campanha de revalorização da monarquia, sob a óbvia influência do processo de constitucionalização da Espanha.
A Assembléia Constituinte instalada em 1987 propôs-se, desde o princípio, reduzir as atribuições do executivo e colocar o Congresso Nacional como eixo do sistema de poderes do Estado. Contribuiu para isso a forte tendência parlamentarista que se manifestou em seus debates, mediante a qual a elite política tentou capitalizar em seu proveito a aversão generalizada da sociedade ao presidencialismo extremado que a ditadura se havia dado como roupagem. Prevaleceu, afinal, o presidencialismo, graças ao concurso de interesses díspares: o presidente da República, que temia pela duração de seu mandato; as Forças Armadas, que, elemento integrante do poder executivo, empenharam-se na defesa deste; os partidos e organizações populares, que, com raras exceções, viram o parlamentarismo como um golpe de Estado da elite política e o cancelamento de uma das suas aspirações mais sentidas —as eleições presidenciais diretas; e, enfim, depois de certa hesitação, a própria burguesia, por recear que o bloco burguês-militar viesse a se fraturar e por preferir manter os vantajosos laços que construíra ao longo do regime anterior com a pesada máquina burocrática encimada pelo poder executivo.
De todos modos, o resultado foi um compromisso. O sistema presidencialista permaneceu, mas num contexto em que a soma maior de atribuições deslocou-se para o legislativo. Paralelamente, após discussões bizantinas e sofismas redacionais, as Forças Armadas retiveram sua capacidade para "garantir a lei e a ordem", cedendo, porém, em relação ao Conselho de Segurança Nacional, que foi extinto; em seu lugar, criou-se o Conselho de Defesa Nacional como órgão de consulta do executivo, transferindo-se para ele as atribuições mais significativas na área da segurança nacional, embora com caráter propositivo. Extra-constitucionalmente, os militares conservam suas prerrogativas e o seu aparelho oculto de poder, formado pelos seus órgãos corporativos e de inteligência.
Liberalismo e democracia
Se a tônica da Constituição de 1988 em relação à organização dos poderes do Estado é um liberalismo acentuado, que se articula com a subordinação do Estado a um quarto poder não explícito, representado pelas Forças Armadas, ela introduz, porém, na tradição constitucionalista brasileira um elemento inovador, ao revestir um caráter mais abertamente democrático. Isto não se manifesta propriamente na ampliação das garantias e direitos individuais, que se derivam da tradição liberal, ampliação que é entretanto considerável (inclusive com a criação de fíguras jurídicas novas, como o habeas data e o mandado de segurança coletivo), e sim na instituição de mecanismos vinculados à democracia direta e no fortalecimento dos instrumentos de participação popular e de vigilância cidadã.
É assim como, ao lado do restabelecimento do sufrágio universal direto e secreto em todos os níveis, a Constituição cria três novas formas de intervenção da cidadania no âmbito legislativo e institucional do país: o plebiscito, adotado normalmente para modificações na organização político-territorial no plano estadual e municipal, e, em caráter especial e data pré-fixada, para decidir sobre a forma de Estado e de governo; o referendum, em situações não especificadas; e a iniciativa popular em matéria de legislação complementar e ordinária, desde que reúna certas condições na esfera federal e municipal, cabendo regulamentação por parte das constituições estaduais. Convém observar que ela não contempla o recurso à democracia direta em matéria constitucional, mesmo quando estabelece a revisão de seu texto atual dentro de cinco anos, já que, então, a população poderá opinar apenas sobre a forma de Estado e de governo. Por outra parte, mantém o princípio da inelegibilidade dos analfabetos e a proibição aos conscritos de votar e serem votados, além de ampliar, em relação à Constituição de 1969, as limitações à elegibilidade dos militares.
A vigilância cidadã ganha uma arma de peso, graças ao mandado de injunção, aplicável aos dispositivos constitucionais que não tenham sido postos em prática por falta de regulamentação. Paralelamente, se estende aos partidos, confederações sindicais e entidades de classe a faculdade de propor ações de inconstitucionalidade. Finalmente, além de torná-la gratuita, a Constituição amplia notavelmente o âmbito da ação popular, incluindo entre seus propósitos a defesa não só do patrimônio público, mas também da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural.
A flexibilização a que estas novas ou renovadas figuras jurídicas submetem o Estado brasileiro, tornando-o mais permeável à iniciativa popular, não tem precedentes na história constitucional do país. Ela expressa, numa ampla medida, o alto grau de diversificação e enriquecimento a que acedeu a sociedade civil, tanto por efeito das transformações na estrutura e nas condições de existência das classes sociais, quanto em conseqüência do empenho do povo brasileiro em defender suas organizações tradicionais e de criar outras novas, em seu esforço de resistência à ditadura. Isto se acentuou à medida que, explorando as brechas abertas no sistema de dominação do bloco burguês-militar, as forças populares intensificaram suas iniciativas reivindicativas e democráticas.
As lutas sociais, nos últimos dez anos, não têm paralelo na história moderna do Brasil e superam certamente todos os auges de massas anteriores, em matéria de amplitude e grau de organização dos setores nelas envolvidos. Aí se incluem desde as grandes greves metalúrgicas de fins dos 70 à campanha pelas diretas-já e às mobilizações provocadas pelo Plano Cruzado, passando pela arregimentação para a luta do proletariado rural e dos pequenos e médios produtores do campo, a combatividade das classes médias assalariadas, a ação da Igreja católica e das entidades profissionais e de classe, as batalhas travadas pelas organizações de moradores, de mulheres, negros, índios e ecologistas, até chegar ao imponente e complexo movimento de pressão sobre a Assembléia Constituinte, ao longo dos seus trabalhos.
Por isso mesmo, a grande questão que a Constituição teve que resolver foi reconhecer essa energia e, ao mesmo tempo, submetê-la à dinâmica interna do aparelho de Estado. Tal como ficaram as coisas, a iniciativa popular passa a ser mediada pela complicada rede de relações existente entre os poderes constitucionais e determinada em seus resultados pelo jogo de sutilezas e cumplicidades que entre eles se desenvolve. A capacidade para influir diretamente na formulação e implementação das políticas públicas, através de mecanismos que assegurem a participação popular nos órgãos de tomada de decisões e nos sistemas de execução, é extremamente precária, como precária é também a sua possibilidade de fiscalização em matéria orçamentária e financeira.
Mesmo quando se refere ao tema, o texto constitucional cuida de enquadrá-lo no sistema de relações internas do Estado, na melhor tradição corporativa, sem admitir pressão ou controle direto das organizações sociais sobre o aparelho estatal. Assim, no que tange aos direitos sociais, estatui o princípio da participação dos trabalhadores e empregados nos órgãos públicos "em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação". O assunto é retomado em função da seguridade social, onde se prescreve a participação da comunidade na gestão, em especial trabalhadores, empresários e aposentados, embora, ao legislar sobre suas partes integrantes (sáude, previdência e assistência social), essa prescrição só se faça explícita em relação à saúde e à assistência social (sendo nesta última que ela assume forma mais ampla) e se omita completamente na seção atinente à previdência social. No tocante à educação, a Constituição alude vagamente à "colaboração da sociedade", assim como à "gestão democrática" do ensino público. Nos demais capítulos da ordem social, ela não contém qualquer referência à participação social, ainda numa questão tão sensível como a do meio ambiente.
Confrontada a esse parâmetro frouxamente corporativo que adota para a ordem social, a posição da Constituição em relação à ordem econômica oscila entre dois extremos. Por um lado, encontramos ali a determinação de que a política agrícola seja "planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo trabalhadores e produtores rurais", além dos demais setores. Sem insistir na imprecisão do termo "produtores" —que não parece referir-se aos produtores independentes, ou pelo menos não só a eles, mas, na tradição semântica da classe dominante brasileira, alude aos proprietários— o artigo generaliza tanto e torna tão abrangente o conceito de participantes que será certamente de difícil aplicação. No outro extremo, está todo o referente à política industrial e de desenvolvimento urbano, onde não se menciona nem por descuido a participação popular.
O mais grave, entretanto, em relação à ordem econômica —além da interdição ao Estado de realizar atividade econômica direta, salvo por motivos especiais, o que escancara as portas à privatização das empresas públicas— é o que aparece, discretamente, no capítulo relativo aos direitos sociais. Após reiterar o direito à participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, a Constituição praticamente lhes veda a possibilidade de participação na gestão, ao reservá-la para casos excepcionais, a serem definidos em lei. Com isso, não é só o princípio da auto-gestão que está ausente da Constituição, mas também, em caráter geral, o da co-gestão.
Observemos, finalmente, que o controle ordinário da utilização dos recursos públicos (aparte o uso do instrumento, de por si excepcional, da ação popular) é colocado ao interior do próprio aparelho de Estado, com preeminência ao Congresso Nacional, auxiliado pelo Tribunal de Contas da União, linha que dá a pauta a ser seguida por estados e municípios. A iniciativa popular em matéria de fiscalização, passível de ser exercida por cidadãos, sindicatos, partidos e associações, limita-se à faculdade de denunciar irregularidades ante o TCU.
Em suma, o princípio de que o poder emana do povo e que este, além de exercê-lo por meio de representantes eleitos, o faz também diretamente, do qual parte a Constituição, vai sendo progressivamente emasculado à medida que esta se desenvolve. Isso começa pela exclusão da intervenção popular em matéria constitucional, prossegue com a subordinação dos mecanismos de democracia direta à iniciativa e/ou decisão final do próprio aparelho de Estado e culmina com o caráter frouxo, limitativo e até proibitivo das disposições sobre a participação popular na gestão e controle da economia e dos órgãos do Estado, assim como nos assuntos referentes à formulação e acompanhamento das políticas públicas. Neste sentido, a influência da vertente democrática burguesa na Constituição de 1988, que representa sua maior novidade, não contraria em absoluto a sua essência liberal.
Democracia e mobilização popular
Não era lícito esperar outra coisa de uma Carta gerada no bojo de um processo em que é inquestionável a hegemonia burguesa. Surpreende até que, sem haver liquidado ainda o legado da derrota histórica a que foram conduzidas a princípios dos 70, as forças de esquerda tenham conseguido bloquear as iniciativas mais arrojadas da elite orgânica burguesa, ainda que à custa de alianças as mais heterodoxas, como no rechaço ao parlamentarismo e na aprovação de dispositivos de inspiração nacionalista, outra inovação da atual Constituição, que não cabe analisar aqui. Mais que isso, conseguiram mesmo plasmar no texto preceitos constitucionais que atendem sentidos interesses do povo brasileiro.
Este é o caso da redefinição e ampliação das garantias individuais e dos direitos políticos e sociais, assim como dos mecanismos de democracia direta e participação popular. Por limitados que sejam os avanços obtidos neste último aspecto, é inegável que eles abrem espaços suscetíveis de ser preenchidos e estendidos através de uma mobilização popular lúcida e perseverante. De todos modos, essa mobilização é imprescindível, não só para assegurar as conquistas alcançadas, mas também porque muitas das questões relevantes colocadas pelo atual período tiveram sua solução adiada e só deverão ser decididas nas batalhas a ser travadas em torno às leis complementares e ordinárias que completarão a presente ordem jurídica.
É, porém, na questão democrática que reside o desafio principal para o Brasil, assim como para o mundo contemporâneo. A ascensão e auge do capitalismo, que fundamentaram a hegemonia da teoria política burguesa e, dentro dela, do liberalismo, levaram a que as conquistas democráticas se tivessem que realizar nos interstícios da ordem jurídico-institucional creada pela burguesia. A própria formulação da concepção democrática ocorreu de maneira tosca e incompleta, proporcionando parcos elementos teóricos e doutrinários às classes dominadas.
Coube a Marx fazer a crítica radical do Estado liberal burguês e —rompendo com a herança rousseauniana, que identifica democracia e propriedade privada (o que permitiu à burguesia proceder à assimilação dessa herança)— conceber o exercício da democracia como ação de classe do proletariado, reduzindo, embora em relação inversa a Hegel, a separação de poderes a uma mera distinção de funções. As circunstâncias particulares em que se realizou a revolução socialista na Rússia —erigindo o partido único em condição de existência do Estado e justificando a retirada de direitos políticos à burguesia, além de introduzir desigualdades enquanto ao exercício desses direitos dentro do próprio bloco revolucionário— limitaram consideravelmente o processo democrático soviético e acabaram por conduzir à ditadura burocrática de Stalin. A maneira pela qual se criou, posteriormente, a maior parte dos Estados socialistas não contribuiu para corrigir substancialmente essas distorçôes.
Atualmente, as tendências reformistas no mundo socialista vão no sentido de, juntamente com a implantação plena da autogestão na economia —condiçãosine qua non da ordem democrática—, fortalecer o sistema representativo, mediante a flexibilização dos processos eleitorais, a liberalização da formação da opinião pública e um crescente pluralismo na seleção de candidatos a postos eletivos. Esses elementos, combinados com o princípio da revocabilidade dos representantes, inherente à verdadeira democracia, tornam possível pensar na regeneração da democracia socialista.
É importante sublinhar, porém, que essa regeneração supõe o reforçamento do sistema representativo, mas não implica a adoção de um sistema misto, que combine liberalismo e democracia, como muitas vezes se pretende. O quanto estes são inconciliáveis ficou demonstrado, com meridiana claridade, no processo político chileno dos anos 70, que culminou com o choque aberto entre a iniciativa das massas, expressada nos órgãos do nascente poder popular, e a resistência do Estado liberal, cioso da sua autonomia e dos mecanismos de auto-controle que se derivam da separação de poderes. A experiência sandinista, na Nicarágua, que ensaiou esse sistema misto, não foi mais do que um regime de transição, imposto pela peculiar correlação de forças em que ela se desenvolvia, sobretudo no plano internacional, e não a impediu de fracassar também.
A análise das experiências políticas derivadas de processos revolucionários, assim como os acontecimentos que vive o mundo socialista hoje, devem ser motivo de reflexão para a luta democrática do povo brasileiro, ressalvadas as diferenças. Do mesmo modo, o processo histórico da democracia liberal burguesa é matéria da maior relevância para o desenho de novos caminhos, entre nós. Sua maior lição é mostrar que é possível às massas realizar conquistas democráticas significativas dentro do regime liberal, as quais são ao mesmo tempo ampliação do campo de ação das massas e escola para o exercício pleno da democracia, cuja concretização transcende já o plano do regime liberal. Essas conquistas, assim como seu impacto sobre a ideologia burguesa, que a leva a avançar no sentido das garantias e liberdades individuais, representam um patrimônio de que não se pode abrir mão.
Por isso, os mecanismos de democracia direta, de vigilância cidadã e de participação popular, presentes na atual Constituição, são o melhor instrumento de que já dispôs o povo trabalhador ao longo de nossa história para construir uma ordem política mais favorável aos seus interesses. Tudo está em não permitir que essa possibilidade fique no papel ou que, no processo real de institucionalização que se abre agora, sobrevenham deformações e mutilações do texto aprovado. É a continuação e o aprofundamento da luta democrática que vem travando o povo brasileiro há mais de uma década que farão com que a forma constitucional esboçada em 1988 adquira contornos definidos e proporcione conteúdos correspondentes às esperanças que ela desperta.
Brasília, 1988

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Brasil: da ditadura à democracia, 1964-1990

Ruy Mauro Marini

Fuente: Archivo de Ruy Mauro Marini con la anotación "Este texto foi preparado, entre fins de 1990 e março de 1991, para uma enciclopédia italiana".


No curso da década de 1970, a América Latina foi palco do desenvolvimento de tendências contraditórias, que implicaram a extensão e o aprofundamento das ditaduras militares, que haviam feito sua aparição na década anterior, ao mesmo tempo que impulsionaram os primeiros passos desses regimes no sentido do restabelecimento da democracia e do Estado de direito, o que se tornará efetivo nos anos 80. Na base desse duplo movimento está, primeiro, o propósito das ditaduras de —coerentes com a doutrina norte-americana da contra-insurgência, que as havia inspirado, a qual fixa três objetivos para a ação militar: derrota da insurgência, conquista de base social e institucionalização democrática— pôr fim ao Estado de exceção; e, segundo, a revisão da doutrina da contra-insurgência que se processa nos Estados Unidos, sob o impacto da derrota na guerra do Vietnam, cujo resultado será a afirmação pelo governo de James Carter da política de defesa dos direitos humanos e de apoio às democracias, o que se manifesta em relação à América Latina na pressão do Departamento de Estado em favor de democracias ditas viáveis, governáveis ou restringidas.
Essas tendências operam claramente no Brasil dos 70s. Após a implantação da ditadura em 1964 e com base na sua consolidação, mediante a derrota da esquerda armada em 1972 e a expansão econômica do período 1968-73, que ficou conhecida como "milagre brasileiro", o governo volta-se para a obtenção da institucionalização democrática. Nesse contexto, e sem excluir sequer —ante a visão do que ocorria na Espanha— a possibilidade de restaurar o regime monárquico que tivera o país no século XIX, se situam as conversações entre o então chefe do gabinete civil da presidência da República, ministro Leitão da Cunha, e o professor Samuel Huntington, de Harvard, membro da equipe de Carter e autor do livro Political Order in Chanching Societies; daí resultou o documento elaborado por este, com o título Abordagem da descompressão política, que preconizava a ampliação gradual da participação cidadã. A linha que aos poucos vai-se afirmar na cúpula militar brasileira é a de propiciar o restabelecimento do jogo parlamentar e partidário, sob a tutela das Forças Armadas, tutela exercida prioritariamente pelo Conselho de Segurança Nacional, que conformaria uma sorte de quarto poder do Estado —concepção que influenciará os militares argentinos, uruguaios e chilenos, quando estes vierem a encarar a questão da democratizaçao.
O governo Geisel e a descompressão
A construção de uma nova institucionalidade se inicia, de fato, ao assumir o governo o quarto presidente do regime militar, general Ernesto Geisel (1974-79), cabendo-lhe formular a proposta de uma abertura política "lenta, gradual e segura". As condições em que isso vai ser tentado, marcadas pela crise internacional desencadeada pelo primeiro choque do petróleo, levarão a que a abertura se acompanhe de mudanças substanciais na política econômica e de um grande esforço para dar ao Brasil uma maior projeção internacional.
Na perspectiva da redemocratização, o governo Geisel se empenhará em colocar um freio no poderoso e praticamente antônomo aparelho repressivo policial-militar e sem debilitar dentro do bloco no poder a linha dura das Forças Armadas. Sua tarefa se verá facilitada com o falecimento, em menos de um ano, dos três principais líderes da oposição civil, que haviam constituído a chamada Frente Ampla: o ex-presidente Juscelino Kubitschek, morto em um acidente automobilístico; o ex-presidente João Goulart, que havia sido derrocado em 1964, vítima de um enfarte cardíaco; e o ex-governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, que apoiara inicialmente o golpe militar, falecido em conseqüência de uma infecção hospitalar.
Em função da crise política provocada pela tortura e assassinato em prisão de um jornalista, o governo demite em 1976 o comandante do II Exército, sediado em São Paulo, primeiro passo rumo a seus objetivos, praticamente atingidos quando, em 1977, força a renúncia ao cargo do ministro do Exército, general Sylvio Frota, cabeça visível da facção militar de linha dura. A partir daí, sem abandonar as medidas repressivas —cassações de mandatos parlamentares, restrições à propaganda eleitoral, distorções dos mecanismos de representação eleitoral, entre outras— o governo avança paulatinamente na direção que se havia traçado, até chegar, em 1978, à revogação do Ato Institucional número 5 —que, em 1968, reforçara o caráter ditatorial do regime e que é substituído por um conjunto de salvaguardas (estado de sítio, estado de emergência e medidas de emergência)— e a designar e eleger, no ano seguinte, como seu sucessor o chefe do serviço de inteligência, general João Baptista Figueiredo.
Convém assinalar que esse processo de descompressão política corresponde à reorganização das forças que compõem a sociedade civil e à pressão que elas exercem sobre o poder. Apesar das restrições impostas pelo regime, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido opositor que obtivera notável avanço nas eleições parlamentares de 1974, volta a realizar boa performance em 1978, ao mesmo tempo que se registra a formação de movimentos sociais de diversos tipos, tendo como eixo a anistia política, a carestia de vida, etc., e contando com o alento dos setores progressistas da Igreja Católica. Nessa linha, o fato mais importante é a reestruturação do movimento sindical, que, após ensaiar formas limitadas de greve, a partir de 1973, se mobiliza de maneira mais ampla nos primeiros anos do governo Geisel, com base na denúncia do próprio governo de que os índices de preços de 1973 haviam sido adulterados para limitar os aumentos dos salários. A mobilização pela reposição salarial reforça os sindicatos e, em 1978, depois de dez anos, tem lugar a primeira grande greve metalúrgica na zona mais industrializada do país —o conjunto de municípios da Grande São Paulo denominado ABC— a qual, recorrendo inclusive à ocupação branca das fábricas, obtém êxito.
Paralelamente à descompressão, o governo procede a modificações importantes na política econômica e exterior. A crise internacional, que se segue ao aumento dos preços do petróleo em 1973, leva a que, nos países desenvolvidos, a relação salário-lucro se estabilize a um nível baixo, desestimulando os investimentos produtivos; aos excedentes de capital assim creados vem a se somar a reciclagem dos petrodólares, criando uma massa de capital que busca aplicação —via investimentos diretos, empréstimos e financiamentos— nos países da periferia capitalista e no mundo socialista.
No Brasil, as importações de petróleo, que haviam custado 769 milhões de dólares em 1973, saltam a 2.062 milhões em 1974, e continuam crescendo, até chegar a 6.698 milhões de dólares em 1979; de 12% do valor total das importações que elas representavam no primeiro ano de referência, elas corresponderão a 37% no final do período, repercutindo sobre um saldo comercial cronicamente deficitário ao longo da década (salvo os pequenos superávits de 1973 e 1977). Esse desequilíbrio levará a uma modificação importante no modelo econômico.
Com efeito, a partir do golpe de 1964, o governo descartara a antiga política industrial de substituição de importações, mediante a qual o país exportava bens primários e utilizava as divisas resultantes para assegurar a importação de insumos, máquinas e equipamentos para a indústria. Mediante a atenuação ou supressão de limitações quantitativas e alfandegárias, abrira-se a economia nacional, seguindo-se a isso a criação de uma bateria de incentivos e subsídios fiscais e creditícios à exportação de bens manufaturados. Deste modo, enquanto as importações se elevam, entre 1964 e 1973, do patamar de 1 bilhão para o de 6 bilhões de dólares, as exportações fazem o mesmo, sendo que, nestas, a participação de produtos manufaturados evolui no período de 5% para 24% do total (14% e 31% respectivamente, se se consideram todos os itens com algum grau de industrialização).
As circunstâncias de 1974 modificam essa situação: o governo restabelece restrições físicas e tarifárias às importações, ao mesmo tempo que, além de manter e ampliar os incentivos e subsídios à exportação de manufaturados, estende-os às operações praticadas no mercado interno. Paralelamente, lança um ambicioso programa de substituição de importações, com prioridade para produtos intermédios e bens de capital, consubstanciado no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), sustentado pelo Estado. Com isso, embora ponha limites ao déficit comercial —que, de 4,7 bilhões de dólares, em 1974, cai para 1 bilhão, em 1978— e favoreça o aumento da participação de produtos manufaturados e, em geral, industrializados na pauta de exportações (em 1978, ela será de 40% e 51%, respectivamente), incorre em grandes gastos. Estes serão financiados, basicamente, pelos excedentes de capital disponíveis no mercado mundial, principalmente através do endividamento; com efeito, a entrada líquida de investimentos estrangeiros diretos passa de 887 milhões de dólares em 1974 para apenas 1.071 milhões em 1978, enquanto a dívida externa salta de 10 bilhões, a fins de 1972, para 46,5 bilhões de dólares, no final de 1978.
Apesar da hipoteca sobre o futuro que isso representava, a manutenção de altas taxas de crecimento econômico (o PIB aumenta à taxa média anual de 6,7%, entre 1974-78), a facilidade para obtenção de créditos e financiamentos no exterior e a competição entre os grandes países capitalistas, na conjuntura de crise, deram ao país uma sensação de força e autonomia sem precedentes, levando-o a buscar uma projeção internacional mais acentuada. É nesse contexto que toma forma o que a ideologia oficial sintetizou na palavra de ordem "Brasil potência".
Significativa da nova concepção do papel do Brasil no mundo, que inspira nesse período a diplomacia do país, é a mudança verificada na doutrina geopolítica, a qual se impusera como a ideologia por excelência das Forças Armadas desde a segunda guerra mundial. Em seu livro Geopolítica do Brasil, publicado originalmente em 1957 e reeditado com grande pompa em 1967, o general Golbery do Couto e Silva —figura destacada do primeiro governo militar, chefiado pelo marechal Castello Branco— toma como elementos centrais de sua análise a questão da integração nacional e a aliança do Brasil com os Estados Unidos. A obra reflete a problemática nacional dos anos 50, quando o país recém ascendia à posição de primeira potência sul-americana, graças à colaboração com os Estados Unidos na guerra e ao afluxo de investimentos estrangeiros, principalmente norte-americanos, e era ainda assombrado pelos fantasmas que o obsecavam desde o século XIX: a rivalidade com a Argentina e a cobiça estrangeira pela Amazônia. É nessa perspectiva que o autor exalta o papel unificador do planalto central brasileiro, frente às tensões dissociativas criadas pelo rio Amazonas, ao norte, e pelo rio da Prata, ao sul, e preconiza uma estreita aliança com os Estados Unidos, no contexto da guerra fria, em troca do reconhecimento por estes da importância do Brasil no Atlântico Sul.
Embora esses dois temas se mantenham para o general Meira Mattos —que teve seu momento de maior influência política durante o governo Geisel— o título de seu livro, publicado em 1977, indica já a mudança de ótica: A geopolítica e as projeções do poder. Agora, os problemas nao se restringem à integração nacional e às relações com os Estados Unidos, mas consistem também no processo de continentalização que o Brasil deve liderar na América do Sul, assim como no papel que, enquanto potência média, lhe cabe desempenhar no Atlântico Sul. A meados dos 70, o mundo capitalista está em crise, a bipolaridade do poder internacional que emergira no após-guerra está cedendo passagem à multipolaridade, o Brasil aparece em oitavo lugar entre os grandes produtos brutos do bloco capitalista, os capitais estrangeiros de origem alemã e japonesa investidos no país crescem mais depressa que os demais, inclusive os de origem norte-americana. É a época em que, ante a queda dos investimentos nos grandes centros, o capital financeiro flui para os países do Terceiro Mundo, alentando sua expansão (e, como se verá mais tarde, sua vulnerabilidade) e dando-lhes maior margem de manobra no plano internacional. Junto ao Brasil, o México e a Venezuela afirmam também o seu poder nacional, enquanto somam esforços para criar uma organização econômica exclusivamente regional, o Sistema Econômico Latino-Americano (SELA), formado em 1975.
Assim é como se explica que o governo do general Geisel tenha sido levado a estreitar relações com os centros capitalistas emergentes —Europa ocidental, principalmnete Alemanha, e Japão— e a aprofundar diferenças com os Estados Unidos; a pôr em prática uma política independente em relação aos países do Terceiro Mundo e do bloco socialista; e a afirmar energicamente seus interesses na América Latina, dando a essa afirmação um caráter marcadamente subimperialista. Nessa linha —que se chamou de "pragmatismo responsável", isto é, tendente a excluir qualquer tipo de alinhamento automático— destacam-se os seguintes fatos: em 1974, em convênio com o Paraguai, a criação da Companhia Binacional de Itaipu, para a construção de uma gigantesca hidrelétrica, cedendo o Paraguai ao Brasil a energia que lhe correspondia a preços pré-fixados; em 1975, a firma do Tratado de Cooperação Nuclear com a Alemanha, envolvendo investimentos da ordem de 10 bilhões de dólares, para a construção de oito usinas nucleares, uma de enriquecimento e outra de processamento de urânio; nesse mesmo ano, o reconhecimento do governo revolucionário da Angola, antecipando-se às grandes potências e contrariando os Estados Unidos; em 1976, explorando o receio do governo norte-americano em relação ao acordo com a Alemanha, a firma com os Estados Unidos do Tratado de Consultas Mútuas, reservado a potências de maior porte (o qual será ignorado pelo governo de James Carter); em 1977, ante as denúncias do governo Carter de que o Brasil violava os direitos humanos, a denúncia do Acordo de Cooperação Militar com os Estados Unidos, acompanhada do avanço em direção à criação de um poder militar próprio, mediante a formação da empresa estatal Indústria Militar de Material Bélico (IMBEL) e incentivos para a fabricação de tanques, aviões, mísseis, helicópteros, submarinos, radares e similares, sobre a base de licenças italianas, francesas, alemãs e inglesas; em 1978, a firma do Tratado de Cooperação da Amazônia, que reúne todos os países da região, e que se complementa com o Tratado da Bacia do Prata, de 1969 —o que deixou fora de alianças regionais apenas o Chile, com o qual, entretanto, desde o golpe militar de 1973, o Brasil mantinha relações privilegiadas; e, durante todo o período, a prática de estreitas relações econômicas e políticas com o Irã e, depois da queda do Xá, com o Iraque.
O sonho de grandeza da ditadura militar não sobreviveu, porém, à década de 1970. O segundo choque do petróleo, em 1979, a recessão mundial que ele desencadeou e a adoção pelo sistema financeiro internacional de taxas flutuantes de juros puseram fim ao que não havia passado de uma ilusão. A economia manteve ainda seus brios em 1980, crescendo 9%, mas mergulhou na recessão em 1981-83, e a queima das reservas em divisas para sustentar a autonomia do país levou à capitulação de 1982, mediante a decretação de moratória da dívida externa e a submissão ao Fundo Monetário Internacional.
A transição democrática
Nos anos 80, com fortes oscilações, a taxa média anual de crescimento do PIB é de 3%, um pouco superior à taxa de incremento demográfico, da ordem de 2%, mas em marcante contraste com a taxa média anual dos 70, que foi de 8,7%, e a média histórica de 7% desde os anos 40. A dívida externa, que era de 62 bilhões de dólares ao fim da década precedente, quase duplicou, alcançando 113 bilhões em 1989, e o seu serviço nos piores anos chegou a representar 5% do valor total do PIB. Em função disso e de acordo à política ditada pelo FMI, o país mais que dobrou suas exportações, ao mesmo tempo que restringia as importações, para —revertendo a tendência dos 70s— obter grandes saldos comerciais, próximos aos 20 bilhões de dólares anuais, valor transferido quase integralmente ao exterior, a título de pagamento de juros, junto às saídas provocadas pelas remessas de lucros e dividendos e pelo pagamento de regalias. Essas transferências são uma das causas fundamentais do processo inflacionário que, para 1989, chega a 1700% ao ano.
É neste quadro que vai ter lugar a transição democrática. Em 1979, designado por Geisel e eleito indiretamente por um colégio eleitoral, assume o quinto presidente militar, general João Baptista Figueiredo. Chefe dos serviços de inteligência do governo precedente, mas típico militar de caserna, que ameaçava "prender e arrebentar" quem se opusesse à democratização, coube-lhe promover as medidas básicas para este fim. Em seus dois primeiros anos de governo, junto a ações repressivas contra os sindicatos, sobretudo durante a greve de 1980 no ABC paulista, Figueiredo decretou uma anistia política ampla, que permitiu o retorno ao país dos principais políticos de oposição, principalmente Leonel Brizola, herdeiro do trabalhismo de Vargas e Goulart, e Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro; flexibilizou a legislação sindical, abrindo espaço para a formação da Central Unica de Trabalhadores (CUT) e da Central Geral de Trabalhadores (CGT); restabeleceu as eleições diretas para os governos estaduais; extinguiu os partidos creados pela ditadura e promulgou lei que favoreceu a criação de novos partidos.
Surgiu assim o Partido Democrático Social (PDS), que agrupou a maior parte dos membros do antigo partido oficial, enquanto o MDB dava lugar ao PMDB, onde ficou o grosso do contingente opositor, flanqueado, à direita, pelo Partido Popular (PP) e, à esquerda, pelo Partido dos Trabalhadores —expressão da vanguarda operária de Sao Paulo, setores católicos progressistas e intelectuais de esquerda— e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), com Brizola à frente, além de outros agrupamentos de menor expressão. O bom posicionamento da oposição nas pesquisas de opinião levou o governo a emitir, em 1981, uma lei eleitoral proibindo as coligações e estabelecendo o voto por lista partidária. Ante essas limitações, prejudiciais aos pequenos partidos, o PP fundiu-se com o PMDB.
A 15 de novembro de 1982, quase 59 milhões de eleitores foram chamados a participar da primeira disputa multipartidária em vinte anos e compareceram com um índice de abstenção de apenas 17,3%. Resultaram eleitos onze governadores do PMDB e um do PDT, subtraindo ao regime militar o controle governamental dos principais estados da Federação (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) e estabelecendo uma clara diferença no voto do sul desenvolvido, que preferiu a oposição, e as regiões retardatárias, principalmente o nordeste. O PDS manteve a maioria no Senado, mas perdeu a que tinha na Câmara de Deputados. E, efeito da complexa engenharia de formação do Colégio Eleitoral, que elegeria novo presidente en 1984, o PDS estabeleceu uma vantagem de 17 votos nesse órgão. Nessas condições, a democratizacão teria que seguir seu caminho sob o signo da ambiguidade.
Houve, é certo, um momento em que o movimento popular tentou mudar esse quadro. Irrompendo no cenário político, reservado ao jogo das elites e às manobras palacianas, a Campanha pelas Diretas-Já, que exigia eleições diretas imediatas para a presidência da República, promoveu manifestações multitudinárias em todo o país, forçou a adesão dos dirigentes da oposição e dos meios de comunicação de massa, semeou a incerteza e introduziu a divisão nos círculos oficiais, para culminar com a tensa votação de uma emenda constitucional pelo Congresso, a que faltaram apenas 52 votos para chegar aos dois terços requeridos. Papel decisivo nessa derrota coube ao PMDB, que tornou pública antes da votação sua decisão de participar na eleição indireta a ser realizada pelo Colégio Eleitoral, fosse qual fosse o resultado, afastando o perigo de uma crise institucional. O episódio mostrou que a elite política, optando pela frustração da mobilização cívica, preferia a prática das negociações de cúpula.
Por aí se desenvolveram efetivamente os acontecimentos. Ante a vitória do ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, na convenção do PDS que designou candidato à sucessão presidencial, esse partido inicia um processo de cisão, que leva à formação do que viria a ser o Partido da Frente Liberal (PFL). A união deste com o PMDB, na efêmera Aliança Democrática, permitiu a eleição do candidato peemedebista, Tancredo Neves, em novembro de 1984. Parecia garantida a passagem da chefatura do Estado às mãos da oposicão civil.
Mas as coisas seguiram outro rumo. Eleito Tancredo, mas não empossado —devido à súbita enfermidade que, acometendo-o no dia de sua posse, levou-o meses depois à morte— assumiu a presidência o vice-presidente José Sarney, ex-líder do PDS, agora no PFL. Apesar de pomposamente batizado de Nova República, o seu período de governo (1985-90) reforçou o caráter ambíguo da transição. O peso da oposição antiditatorial, encarnado principalmente pelo PMDB, era ali inquestionável, mas o era também seu condicionamento pelas forças que haviam sustentado a ditadura militar.
O primeiro ano de Sarney transcorreu em um contexto de empate entre as duas forças partidárias hegemônicas e os setores da burguesia que elas representavam, ao que se acrescentava o questionamento da legitimidade do governo, chefiado pelo vice-presidente de um presidente que não tomara posse. Gerou-se, assim, uma sensação de vazio de poder, que estimulava a ação das oposições, principalmente de Brizola, e a exacerbação das reivindicaçoes fracionais e corporativas. Essa era, de fato, a forma que assumia a luta de classes, em circunstâncias nas quais os acordos de cúpula impediam a busca de alternativas econômicas e políticas capazes de exprimir os anseios das grandes maiorias.
O surdo descontentamento que grassava no país ameaçava assumir perfil mais definido, como mostraram as eleições municipais de 1985. Seu resultado não poderia ser mais decepcionante para o governo e o PMDB: enquanto os partidos de oposição, como PT e PDT, obtinham significativas vitórias em seu próprio campo e avançavam no resto do país, a coalizão governante retrocedia no plano nacional e amargava humilhante revés na principal fortaleza peemedebista, São Paulo. O debilitamento do PMDB propiciou ao PFL, apesar de seu fraco desempenho eleitoral, a conquista de novas posições no governo e a Sarney uma crescente autonomização, graças principalmente à sua estreita ligação com os militares.
É nesse contexto que, em 1986, o governo assume duas iniciativas marcantes: a integração econômica do Cone Sul e o Plano Cruzado. A aproximação com a Argentina, facilitada pela restauração do poder civil nos dois países, iniciara-se em 1985, através da firma de um acordo destinado a equilibrar o intercâmbio comercial entre os dois países e que contemplava a criação de uma comissão mista de alto nível, para estudar a integração das duas economias. Em julho de 1986, Sarney e o presidente Raúl Alfonsín firmaram, em Buenos Aires, a Ata para a Integração Brasil-Argentina, com doze protocolos, referidos a questões comerciais, à formação de empresas binacionais, criação de mecanismos de financiamento recíproco e fundos de investimento e cooperação científica e tecnológica, entre outros assuntos.
Atraindo o Uruguai e, depois, o Paraguai, essa política orientou-se em direção à formação de um mercado comum dos quatro países. Com isso, tratou-se de estabelecer um contrapeso à retomada da influência norte-americana na região, que havia forçado já o Brasil a moderar suas pretensões no plano internacional. Além disso, o Mercosul revertia a tendência histórica à rivalidade que, desde o século XIX, caracterizara as relações entre os dois maiores países sul-americanos.
Por sua vez, o Plano Cruzado, conjunto de medidas heterodoxas, semelhantes às que adotara a Argentina no ano precedente, sacudiu o marasmo em que se debatia o governo. Concebido e conduzido pelo ministro da Fazenda, Dilson Funaro, industrial paulista ligado ao PMDB, seu objetivo foi o de legitimar o governo de Sarney, restabelecer o controle burguês, via PMDB, sobre o movimento de masas e devolver a iniciativa à burguesia industrial. A grande sacrificada foi, inicialmente, a burguesia comercial vinculada ao mercado interno, elo fraco do bloco burguês, mas as reformas pretendidas, principalmente a bancaria, deveriam impactar também a fração financeira. Na medida em que esta impediu sua concretização, o Plano não foi muito além do congelamento de preços e salários e acabou por beneficiá-la, asim como ao setor agrário exportador. Entretanto, as expectativas que criou e a liquidação de poupança a que procedeu a classe média estimularam a demanda e mantiveram em patamar elevado as taxas de crescimento econômico.
A meados do ano, a euforia provocada pelo Plano começou a ceder. Por um lado, o aumento artificial da demanda provocou o desabastecimento de bens, que desaguou no mercado negro; por outro, a equivocada política cambial conduziu ao crescimento das importações e à queda em flecha das exportações. A conseqüência foi a liquidação das magras reservas em divisas do país e a incapacidade deste para fazer frente aos compromissos externos, que levariam à moratoria de 1987. Mas o resultado político foi apreciável: o PMDB acabou sendo o grande vencedor das eleições parlamentares e para governos e assembléias estaduais de 1986. O governo e o partido comemoraram essa vitória pondo fim ao Plano Cruzado, mediante a suspensão do congelamento de preços.
Em março de 1987, ao assumir os cargos que as urnas lhe haviam conferido, o bloco governante nao contava já com respaldo popular. Isso não impediu, porém, que o novo Congresso se arvorasse em Assembléia Constituinte, como estava previsto. Fato incômodo nessa metamorfose foi a presença dos senadores "biônicos", designados anteriormente pelo governo militar, cujo mandato só expiraria em 1990; ele foi contornado mediante a decisão da Constituinte congressual de considerá-los como membros plenos.
A nova Constituição, promulgada a 5 de outubro de 1988, é, em linhas gerais, liberal, democrática e nacionalista. Mantém a república e a federação, assim como o regime presidencialista, concede ampla liberdade de organização partidária, proclama o direito de greve sem restrições, suprime a censura prévia, qualifica como crimes de extrema gravidade o racismo e a tortura. Paralelamente, cria mecanismos de democracia direta, como o plebiscito e o referendum, além de admitir —restrita à legislação ordinária— a iniciativa popular em matéria de projetos de lei; finalmente, reserva às empresas nacionais a exploração dos recursos do solo e do subsolo e lhes outorga tratamento privilegiado por parte do Estado. Em relação à questão agrária, ela retrocede em certos pontos com referência à legislação anterior, particularmente no que diz respeito à desapropriação de terras.
O texto constitucional foi produto de enfrentamentos e transações, em um processo no qual os partidos de esquerda, embora minoritários, assumiram no começo a iniciativa, o que deixou marcas no resultado final. Partidos como o PMDB e o PFL, assim como agrupações afins, mostraram-se vacilantes e incapazes de um comportamento disciplinado e coerente. Isto levou as organizações patronais e as Forças Armadas a exercerem de fora pressões sobre a Constituinte. Essas pressões motivaram a formação de uma aglomeração provisória de caráter conservador, o chamado "Centrão", que respondeu pela regulamentação final das questões que interessavam mais diretamente a essas forças.
O novo regime
O processo constituinte pôs em evidencia a fragilidade dos grandes partidos, que constituiam a representação da classe dominante brasileira, situação que se agravou, a fins de 1988, com a cisão do PMDB que deu origem ao Partido Social Democrático Brasileiro (PSDB), agrupação de centro-esquerda com assento principal em São Paulo. Não surpreende, pois, que os grandes eleitores do país —organizações patronais, grupos econômicos e meios de comunicação de massa— se mostrassem divididos entre os cinco candidatos que disputaram sua preferência, no primeiro turno das eleições presidenciais de 1989. Eram eles Paulo Maluf (PDS), Ulysses Guimarães (PMDB), Aureliano Chaves (PFL), Mario Covas (PSDB) e Fernando Collor de Mello, jovem político sem maior curriculum, que concorreu por uma formação desconhecida, o Partido de Renovação Nacional (PRN). Somente ao perceber que os candidatos de esquerda, Luís Ignácio da Silva - Lula (PT), a quem coube o segundo lugar, e Leonel Brizola (PDT), reuniam mais de 24 milhões de votos, contra os 17 milhões de Collor de Mello, primeiro colocado, é que a classe dominante uniu forças para garantir a este a vitória no segundo turno.
Essas eleições representaram o último ato da longa transição à democracia e abriram uma nova etapa na vida brasileira. Nela, o primeiro desafio consiste em superar a estagflação em que o país mergulhou nos anos 80 e ajustá-lo às condições criadas pela nova economia mundial, que emergiu na segunda metade dessa década. Apostando no neo-liberalismo, o governo Collor adotou uma estratégia que contempla a estabilização monetária, a renegociação da dívida externa, a redução da presença estatal na economia e a abertura comercial ao exterior.
Em seu primeiro ano de implementação, essa estratégia exibiu resultados insuficientes e precários. Seu efeito mais sentido foi o de romper a unidade do bloco dominante, fragilmente construída no segundo turno da eleição presidencial, ao contrapor os interesses da grande burguesia industrial (centrada na indústria automobilística, siderúrgica, elétrica e metal-mecânica), de clara vocação protecionista, aos dos setores industriais mais recentes (assentados principalmente na indústria de informática, telecomunicações, aeronáutica e aero-espacial, assim como nos serviços conexos), que tendem a uma integração mais dinâmica à economia mundial. Simultaneamente, o governo entrou em rota de colisão com os sindicatos operários, em especial com a CUT, e com os trabalhadores das empresas estatais, que se opõem à política recessiva e privatizante que ele pratica.
É sobre esse pano de fundo que a sociedade civil enfrenta o segundo desafio do período, ou seja, o de construir uma nova democracia. A atual ordem constitucional, fruto de acordos de cúpula contratados pela elite dominante, que prescindiu por isso da concertação de um pacto social, caracteriza-se por sua precariedade. Tanto é assim que a própria Constituição de 1988 estabeleceu o prazo de cinco anos para sua revisão, a qual nao exclui siquer a possibilidade de alterar a forma de Estado e o sistema de governo. Enquanto prevalece esse clima de incerteza e se aprofundam as contradições e conflitos sociais, o presidente da República acentua o seu estilo personalista de governar e, ao mesmo tempo que apela às massas desorganizadas, apoia-se nas Forças Armadas.
A década de 1990 apresenta-se, assim, para o Brasil como um momento de definição tanto em relação ao papel que lhe cabe na nova ordem internacional, como com respeito às normas e estruturas econômicas e políticas que ele deve se dar. As agudas desigualdades sociais, que permitem a 10% da população concentrar praticamente metade da renda nacional e que mantêm abaixo da pobreza 60% da população ocupada, e as não menos gritantes desigualdades nacionais, que se expressam em um índice de mortalidade infantil de 125 por mil crianças nascidas vivas, no nordeste, contra 61 por mil, no sul, não antecipam soluções fáceis nem tranquilas. Mas é a partir do reconhecimento dessa situação que os brasileiros terão que se forjar um projeto de nação, que se mostre capaz de abrir-lhes o caminho do futuro.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

MEMORIA - "6. A guisa de balanço"


6. A guisa de balanço
Um trabalho desta natureza ficaria incompleto, sem uma tentativa de auto-objetivação, isto é, se n o procurasse perceber, de modo relativamente impessoal, a maneira pela qual outros viram a minha atividade intelectual, ao longo do seu desenvolvimento. A maneira que encontro para fazê-lo - necessariamente limitada, na medida em que só pode dar conta das reaç es de intelectuais iguais a mim - consiste em proceder a uma resenha da aceitação ou do rechaço aos meus escritos. Além das limitaçôes inherentes a esse procedimento, o resultado a que chegue será ainda mais insatisfatório, pelo fato de que me ocuparei apenas do que sei, sem recorrer a uma pesquisa ex professo.
Ao considerar a repercussão do mue trabalho intelectual nos meios científicos e acadêmicos, distingo três momentos. O primeiro, que se inicia com a publicação dos artigos que escrevi no México e vai até 1973, corresponde à livre utilização por outros de conceitos por mim elaborados, sem o cuidado de identificação da fonte, possivelmente por tratar-se de autor pouco conhecido. A essa regra geral escaparam, a rigor, Frank, 1967, e Martins, 1972. Esta é, também, a fase em que começam a surgir trabalhos - em sua maioria, teses de graduação - inspirados e, às vezes, orientados por mim. Ao final dela, registra-se a primeira manifestação explícita de divergência comigo - Cardoso, 1972 - e uma observação premonitória: "La originalidad del ensayo de sistematización del problema (da dependência) hecho por Marini ... da al texto un gran valor, si bien no lo exime de contener partes muy controvertibles" (De Los Ríos, 1973, referindo-se ao artigo de Sociedad y Desarrollo que contém a primeira versão de Dialéctica de la dependencia).
Eu veria logo esse duplo aspecto do meu trabalho, ao deixar o Chile. Com a publicação de Dialéctica de la Dependencia, começa a segunda fase do processo que estou examinando: junto à utilização ampla - e, agora, reconhecida - do meu trabalho, como base teórica e metodológica, por parte de muitos estudiosos (em geral, jovens), ele passa a ser discutido, questionado e - quase sempre, com paixão e, até, com má intenção - atacado. Assinalei, a seu tempo, que não vivi isoladamente essa experiência, que se verificava no contexto da crítica à teoria da dependência, que se inicia em 1974. Não há dúvida, porém, que, à exceção de Frank, minha obra foi o alvo mais visado - o que não se pode dissociar, a meu ver, da posição política que lhe corresponde.
Assim, recém publicado o meu livro, aparecia, ao lado do elogio de Blanco Mejía, a crítica de Arauco, 1974, ao conceito de superexploraçào - por ele identificado ao de mais-valia absoluta, erro em que não seria o primeiro nem o último a incorrer - enquanto Cueva, 1974, num ensaio que marcou época, abria fogo contra o dependentismo como escola, aí incluidos Frank, Cardoso, Theotônio dos Santos, Vania Bambirra e eu. Os trabalhos de Arauco e de Cueva, apresentados ao XI Congresso Latino-Americano de Sociologia, na Costa Rica, foram produto de discuss es internas no CELA-UNAM, a que eu recém me incorporara, mas das quais n o participei, e deram início à ofensiva contra a teoria da dependência. Em texto mais recente, referindo-se a isso, Cueva afirma que "nunca pensamos que nuestras críticas de mediados de los años 70 a la teoría de la dependencia, que pretendían ser de izquierda, podrían sumarse involuntariamente al aluvión derechista que después se precipitó sobre aquella teoría" (Cueva, 1988).
No que me diz respeito, o ponto culminante da ofensiva situa-se em 1978, com os trabalhos de Serra/Cardoso e Castañeda/Hett. Mas é, também, quando me encontro com a primeira tentativa séria para, sobrepondo-se ao calor da polêmica, recuperar em outro nível algumas das questoes suscitadas na discussão: em Leal, 1978, o autor, partindo da teoria marxista do processo de trabalho, examina sucessivamente Baran (cap. I), Frank, Cardoso/Faletto e Prebisch (cap. II) e Marini (cap. III), com o fim de determinar em que medida esses autores contribuem a fundar uma teoria do capitalismo latino-americano. Independentemente de concordar ou não com as conclusoes a que chega Leal, o caminho por ele escolhido é, sem dúvida, o mais adequado para passar daquilo que foi capaz de pensar a teoria da dependência a um tipo de conhecimento superior. Essa será, de resto, a tendência que se afirmará nos estudos sobre o assunto, uma vez serenados os ânimos.
Da produção desse período, cabe destacar Arroio/Cabral, 1974; Osório, 1975; Fröbel/Jürgen/Kreye, 1977; Bambirra, 1978; Castro Martinez, 1980; Torres Carral, 1981, e Chilcote/Johnson, 1983, assim como a maioria das teses que, orientadas por mim, foram defendidas no México, a diferentes níveis, entre 1980 e 1984, como obras que contribuiram a ampliar meu horizonte de pesquisa e a refinar meu instrumental de análise. A dois trabalhos, porém, por razoes diametralmente opostas, acho necessário fazer referência especial. O primeiro - Osório, 1984 - estuda o desenvolvimento do pensamento latino-americano, a partir da teoria da dependência, e o nexo existente entre ele e o processo sócio-político da região, iluminando, sob muitos aspectos, as origens e motivaç es das express es teóricas que esse pensamento assumiu. O segundo - Mantega, 1984 - toma o que supôe ser o moderno pensamento marxista no Brasil, considerando as obras de Caio Prado Jr., Frank e Marini, para, com base em um enfoque ideológico e muita desinformação (a ponto de citar apenas, dos meus trabalhos, a edição de 1969 de Subdesarrollo y revolución e a tradução por uma revista brasileira de um de meus artigos de 1965 - que, como já indiquei, serviram de insumo ao livro em questão-), concluir com um requisitório anti-trotskista, que não só carece de sentido, como surpreende por sua intolerância, além de ser já anacrônico.
Com efeito, a partir de 1984, a atitude em relação a meu trabalho e, em geral, à teoria da dependência entra numa nova fase, que toma dois caminhos, mesmo quando reincide no estilo do segundo período (Cismondi, 1987): o primeiro consiste em considerar um e outra como fatos de necessário registro, na história do pensamento latino-americano, e o segundo, em buscar, na trilha por eles aberta, novos desenvolvimentos teóricos. Vale mencionar, no primeiro caso, Bottomore, 1988, e Kay, 1989 - e, mesmo, Davydov, 1985-1986, por muito que este se ressinta do atraso da teoria social na União Soviética -; e, no outro, Kuntz, 1984; Dussel, 1988; Cueva, 1988 e 1989, e Osorio, 1990, que procuram recuperar e transcender, no plano do marxismo, a teoria da dependência. Vale também mencionar Bordin, 1988, que se serve dela para reinterpretar os fundamentos e as projeç es da teologia da libertação.
Cabe concluir insistindo num traço peculiar da teoria da dependência, qualquer que seja o juízo que dela se faça: sua contribuição decisiva para alentar o estudo da América Latina pelos próprios latino-americanos e sua capacidade para, invertendo por primeira vez o sentido das relaç es entre a região e os grandes centros capitalistas, fazer com que, ao invés de receptor, o pensamento latino-americano passasse a influir sobre as correntes progressistas da Europa e dos Estados Unidos; basta citar, neste sentido, autores como Amin, Sweezy, Wallenstein, Poulantzas, Arrighi, Magdoff, Touraine. A pobreza teórica da América Latina, nos anos 80, é, numa ampla medida, resultado da ofensiva desfechada contra a teoria da dependência, fato que preparou o terreno para a reintegraçào da região ao novo sistema mundial que começava a se gestar e que se caracteriza pela afirmação hegemônica, em todos os planos, dos grandes centros capitalistas.

domingo, 10 de janeiro de 2010

MEMORIA - "5. A volta"


5. A volta
E vinte anos -sobretudo se correspondem à nossa fase de afirmação e desenvolvimento profissional- contam muito. Contam ainda mais se o país a que regressamos, apesar de ter tido o seu movimento geral determinado pelas mesmas tendências que regeram o da América Latina, participando, pois, do mesmo processo de hipertrofia das desigualdades de classe, da dependência externa e do terrorismo de Estado que a caracterizou, nesse periodo, o fez acentuando seu isolamento cultural em relaçào a ela e lançando-se a um consumo compulsivo das idéias em moda nos Estados Unidos e na Europa.
Em minha segunda visita ao Brasil, a meados de 1980, atendendo a convite da Escola Interamericana de Administração Pública, eu tomara já consciência disso. Com efeito, ao participar de uma mesa redonda com economistas do MDB, no Rio, havia sido, não sem surpresa, o único a contestar a tese de que o Brasil, sob a ditadura militar, ampliara as bases de sua autonomia no plano internacional e dispunha de condiçôes invejáveis para enfrentar os desafios da década de 1980. Os acontecimentos posteriores à moratória mexicana de 1982, para não falar da trajetória seguida depois pelo país, levariam a maioria deles a modificar esse ponto de vista. Mas a revisão não foi suficiente para transformar qualitativamente o pathos cultural que a ditadura impôs à elite intelectual brasileira.
Para que esta se tornasse no que hoje é concorreu decisivamente, além do exílio sofrido pela intelectualidade rebelde dos anos 60, uma política coerente, baseada num conjunto de instrumentos: a censura, que erigiu uma barreira à rica produção sociológica, econômica e política latino-americana desse período; a criação de novos meios de comunicação, em particular a televisão, funcionais ao sistema; a intervenção nas universidades, que expulsou professores e alunos, mutilou os planos de estudo e, através da privatização, degradou até o limite a qualidade do ensino; e a destinação de gordas verbas para a pesquisa e a pós-graduação, implicando novos critérios para a seleção de temas e o direcionamento das bolsas de estudo para os Estados Unidos e alguns centros europeus. A análise da política cultural da ditadura, iniciada com os acordos MEC-USAID, e de suas conseqüências ainda está por ser feita, representando um ajuste de contas indispensável para que o Brasil possa descobrir sua verdadeira identidade.
Essa política teria resultado, porém, menos exitosa se mais e mais intelectuais não houvessem sido cooptados pelo sistema, inclusive aqueles que se situavam em oposição ao regime. Ocorreu no país um fenômeno curioso: intelectuais de esquerda, que chegavam a ocupar posiçôes em centros acadêmicos, ou que os criavam com o fim precípuo de ocupar posiçôes, estabeleciam à sua volta uma rede de proteção contra o assédio da ditadura e utilizavam sua influência sobre a destinação de verbas e de bolsas para consolidar o que haviam conquistado, atuando com base em critérios sumamente grupais. Entretanto, o que aparecia, originalmente, como autodefesa e solidariedade tornou-se, com o correr do tempo - principalmente ao ter início a desagregaçào do regime, a fins dos anos 70 - uma vocação irresistível para o corporativismo, a cumplicidade e o desejo de exclusão de todo aquele - qualquer que fosse sua conotação política - que ameaçasse o poder das pessoas e grupos beneficiários desse processo. Por outra parte, no ambiente fechado em que sufocava o país, resultava proveitoso, para os que nele podiam entrar e sair livremente, monopolizar e personalizar as idéias que floresciam na vida intelectual da região, adequando-as previamente aos limites estabelecidos pela ditadura. Neste contexto, a maioria da intelectualidade brasileira de esquerda colaborou, de maneira mais ou menos consciente, com a política oficial, fechando o caminho à difusão dos temas que agitaram a esquerda latino-americana na década de 1970, marcada por processos políticos de grande transcendência e concluída com uma revolução popular vitoriosa.
O fenômeno não era exclusivamente brasileiro ou, com o passar do tempo, foi deixando de sê-lo. Após os movimentos de 1968, a Europa e os Estados Unidos viram aguçar-se as lutas de classes e tiveram que enfrentar iniciativas populares e de esquerda, que desafiavam o sistema dominante. Mencionamos já que, a meados dos 70, o resultado dessas lutas passou a ser favorável às forças do stablishment. Mencionamos, também, que, desde o golpe chileno de 1974, a social-democracia européia passou a atuar no cenário intelectual latino-americano, no que fora precedida pelas fundaçôes de pesquisa norte-americanas e acompanhada pelas instituiçôes culturais financiadas pelas igrejas e pela democracia cristã. No Brasil e no resto da América Latina, a disputa pela obtenção dos recursos daí advindos reconstituiu a elite intelectual sobre bases totalmente novas, sem qualquer relação com as que - fundadas na radicalização política e na ascensão dos movimentos de massas - a haviam sustentado na década de 1960. Análise exemplar disso foi realizada por Agustín Cueva, em ensaio incluído em seu livro América Latina en la frontera de los años 90, assim como por James Petras, no artigo "La metamorfosis de los intelectuales latinoamericanos" (Brecha, Montevidéu, 1988).
Como quer que fosse, esse era o país ao qual eu devia me reintegrar. É natural que, chegando, me aproximasse de antigos companheiros de lutas e de exílio, aos quais as eleiçôes de 1982 haviam proporcionado novo campo de ação, em especial Darcy Ribeiro, Neiva Moreira e Theotônio dos Santos. Darcy, então preocupado com introduzir uma cunha na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com o fim de promover a recuperação desse autêntico "elefante branco", solicitou-me projeto de um centro de estudos nacionais, a ser criado ali. Feito isso, participei, com ele, das negociaçôes com a reitoria d UERJ e da convocatória a destacados intelectuais de esquerda. A resistência oposta pela universidade levou, porém, o projeto ao fracasso, tendo ela conseguido manter-se intocável durante toda a gestão de Brizola.
Com Neiva Moreira, entrei a colaborar na redação do Jornal do País, de tiragem quinzenal, assumindo a direção de um suplemento de seis páginas; dele sairam, sob minha direção, em 1984, uns sete ou oito números - dedicados a questôes como as relaçôes Brasil-Estados Unidos, a indústria da informática, a crise da universidade, a proliferação das seitas religiosas, a imprensa alternativa, as implicaçôes ecológicas da represa de Tucuruí - mas nossas diferenças de critério, somadas à crise que se abateu sobre o jornal, levaram-me a abandonar o trabalho. Em 1985 e 1986, editamos juntos uma revista trimestral,Terra Firme, da qual sairam dois números e que se estiolou, ante as pressôes da campanha eleitoral de 1986. Com Emir Sader e José Aníbal Peres de Pontes, tentei ainda a criação de uma revista teórica, sem êxito. A essa fase, marcada pela tentativa de criar meios para chegar ao grande público brasileiro, pertence o meu ensaio "Possibilidades e limites da Assambléia Constituinte", incluído na coletânea organizada por Emir para a Brasiliense, sob o título Constituinte e democracia no Brasil hoje.
Foi com Theotônio, que ocupava um cargo de direçào na Fundação Escola de Serviço Público do Rio de Janeiro, que encontrei condiçôes de trabalho mais favoráveis. Orgão secundário no esquema administrativo do Rio, a FESP pode atuar com certa liberdade, embora suas iniciativas, por ciúmes e rivalidades com gente da equipe de governo, tenham sido em geral mal recebidas e, no máximo, toleradas. Assumi ali a coordenaçào de projetos acadêmicos, cabendo-me, precipuamente, ocupar-me da criação de um curso de graduação em administraçào pública.
A idéia era interessante, mas ia contra a corrente. Após a iniciativa pioneira da EBAP, nos anos 50, os cursos de administração haviam proliferado no país, sobretudo (pelo seu baixo custo) na área privada do ensino, mas inteiramente voltados para a administração de empresas. A própria Fundação Getúlio Vargas descaracterizou, primeiro, a EBAP, suprimindo o regime de tempo integral, assim como as bolsas de estudo, além de aligeirar no curriculum a forte carga de ciências sociais, para, finalmente, extingui-la, a princípios da década de 1980. Após concluir o projeto do Curso Superior de Administração Pública (CESAP) e acompanhar sua tramitação, até vê-lo autorizado pelo Presidente da República, a princípios de 1986, assisti ao seu empantanamento, por falta de recursos, e à sua inviabilização, com a derrota de Darcy Ribeiro nas eleiçôes para governador do Rio. É justo destacar o apoio entusiasta que tive, nessa empresa, de Newton Moreira e Silva, então diretor da FESP, e de Yara Coelho Muniz, minha secretária, colaboradora e amiga.
Nesse meio tempo, aproveitando o espaço de que dispunha Theotônio e contando com a colaboraçào de uma equipe, em que se destacavam Hélio Silva, Gustavo Senechal, Bolívar Meireles e Paulo Emílio, foi possível fazer alguma coisa -para o que concorreu o apoio da Universidade das Naçôes Unidas e do próprio CNPq, a partir do momento em que José Nilo Tavares, rompendo a circularidade corporativa típica da instituição, assumiu ali um cargo de direção. Apoiados nisso, procuramos ventilar o ambiente intelectual brasileiro, colocando em cena temas, personagens e enfoques relevantes nos círculos internacionais de esquerda, mas que vinham sendo sistematicamente excluídos dos eventos científicos e culturais do país. Embora o resultado tenha sido muito inferior ao que esperávamos, vale à pena resenhar algumas das iniciativas mais interessantes.
Em 1984, realizou-se, no Hotel Glória, o Congresso Internacional de Economistas, promovido pela FESP e pelas Faculdades Integradas Estácio de Sá, ao que compareceram, entre outros, Andre Gunder Frank (que não vinha ao Brasil desde 1964) e Immanuel Wallerstein. Coube-me pronunciar ali uma conferência sobre "Crise e reordenamento da economia capitalista mundial", na qual destacava a tendência à formação de blocos econômicos e indagava, nesse contexto, sobre o futuro da América Latina. Durante o Congresso, fui apanhado de surpresa por jornalistas da revista Isto É, daí resultando uma reportagem sensacionalista, em que eu apareci, uma vez mais, como grande responsável pela luta armada no Brasil.
Em 1985, no marco de uma pesquisa sobre movimentos sociais, patrocinada pela UNU, teve lugar um seminário nacional, onde apresentei um paper sobre o movimento operário no Brasil, que se publicou (com os outros materiais) na revista que criamos na FESP, Política e Administração, e se republicou emCuadernos Políticos; essa linha, que teve outros desdobramentos, culminaria com o seminário sobre movimentos sociais e democracia no Brasil, realizado em 1986, a que se associou também CLACSO. Ainda em 1985, com a UNU, a FESP co-patrocinou o seminário internacional sobre "O papel do Estado na segurança da América Latina diante da ameaça à paz", de que participaram, entre outros, José Agustín Silva Michelena, Orlando Fals Borda, Héctor Oquelí e Heinz R. Sonntag- tendo eu apresentado um paper relativo à Geopolítica latino-americana, em que aproveitava para examinar o estado em que se encontrava a questão do subimperialismo; e outro, sobre "Crise internacional, reordenamento da economia mundial e estratégias do desenvolvimento científico e tecnológico", onde fiz uma conferência sobre "O pensamento econômico na América Latina".
O maior acontecimento de 1986 e, sem dúvida, o mais marcante em meu período na FESP, foi o Curso Comemorativo "Trinta Anos de Bandung", a nível de pós-graduação, sob os auspícios da UNU - que contava realizar outros semelhantes na India e no Egito, o que não se efetivou plenamente. Com bom financiamento e a colaboração eficiente de Flávio Wanderley Lara, pudemos trazer treze bolsistas africanos e latino-americanos, aos quais se somaram cerca de sete brasileiros, assim como excelentes conferencistas, entre os quais Harry Magdoff, Elmar Altvater, Otto Kreye e Tomás Vasconi. Meu curso, relativo a "Teorias do desenvolvimento econômico e da dependência", permitiu-me sistematizar os resultados a que chegara minha pesquisa sobre o tema.
Aproveitando, em parte, a infra-estrutura desse curso e o apoio do CNPq e da Fundação Alexandre de Gusmão, realizamos, em conjunto com a FLACSO, o curso de pós-graduação "O Brasil e a América Latina no sistema internacional", de que participaram também Edelberto Torres-Rivas, René Dreyfus, Roberto Bouzas, Monica Hirst, Vania Bambirra, Antonio Carlos Peixoto, Luiz Alberto Moniz Bandeira e outros. Nele, entre cursos e conferências, tratei da integração latino-americana e das relaçôes internacionais do Brasil e orientei duas dissertaçôes -sobre a ação do IBAD no Brasil e sobre o subimperialismo brasileiro na Bolívia. Entre os eventos internacionais que a FESP promoveu, cabe ainda mencionar o XVI Congresso Latino-Americano de Sociologia, com apoio da UERJ, no qual coordenei o seminário sobre "Imperialismo, colonialismo e democracia" e apresentei o paper sobre O movimento operário e a democracia; e o II Simpósio Latino-Americano de Política Científica e Tecnológica, onde a minha intervenção versou sobre progresso técnico e emprego.
A longa estada no exterior a que o exílio me havia forçado levou-me, ao meu regresso, a me retrair em relação à participação em eventos no estrangeiro. Em 1985, porém, atendendo ainda a compromissos anteriores, viajei ao México, a Cuba e a Porto Rico. No México, tratava-se de um seminário promovido pelo Serviço Universitário Mundial (SUM), sobre problemas da democracia; o paper que apresentei, La lucha por la democracia en América Latina, foi publicado por Cuadernos Políticos e, mais tarde, na revista da Universidade de Brasília, Humanidades. A viagem a Havana fez-se no quadro do encontro internacional promovido pelo Presidente Fidel Castro, sobre a dívida externa do Terceiro Mundo, que teve caráter mais político do que acadêmico. Finalmente, em San Juan, participei do II Congresso de Sociologia de Porto Rico, pronunciando conferência sobre a crise do pensamento latino-americano, além de outras, sobre temas variados, em faculdades e institutos de universidades locais.
Em 1986, tendo já em perspectiva o desligamento da FESP, como conseqüência do resultado das eleiçôes estaduais, recebi comunicação do reitor da Universidade de Brasília, Cristóvam Buarque, informando-me sobre gestôes em curso para minha reintegração à instituição. Tratava-se de uma mudança radical na política por ela adotada a esse respeito, havendo a UnB ignorado inclusive a solicitaçào que eu fizera nesse sentido, após a anistia de 1979. Graças ao empenho do novo reitor e ao esforço e dedicação da professora Geralda Dias, do Departamento de História, assim como do professor José Geraldo Júnior, que responderam pelo levantamento e análise dos fatos, fui um dos primeiros de uma numerosa lista de professores e funcionários reintegrados, o que veio a reparar uma das muitas arbitrariedades cometidas pela ditadura. Em março de 1987, já demitido da Fesp pela nova administração nomeada pelo governador Moreira Franco, transferi-me para Brasília.
Adscrito ao Departamento de Ciência Política e Relaç es Internacionais, eu iria reencontrar na UnB velhos amigos, como Vania Bambirra, Theotônio dos Santos, Geralda Dias, Luiz Fernando Victor, entre outros, além de fazer novas amizades, em especial Adalgisa Rosário, Argemiro Procópio, Cristóvam Buarque, Luiz Pedone e David Fleischer. Assumi, após um semestre de adaptação, a carga docente regular, que impoe, semestralmente, a realização de um curso de graduação e outro de pós-graduação. Entre 1987 e 1989, isso implicou, no primeiro caso, ministrar os cursos de Mudança Política no Brasil e Teoria e Metodologia Marxista I e II (estes últimos, criados por sugestão minha) e, no segundo caso, os de Teoría Política do Estado, Tópicos Especiais em Teoria Política e Estado, Elites e Sociedade. Exerci, também, a função de coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência Política, assim como mandatos como membro do Conselho Acadêmico do Programa de Doutorado em América Latina, patrocinado pela UnB e pela FLACSO, e como membro do Conselho Editorial da Universidade de Brasília. Participei, além disso, de bancas de concurso público para professor e de exame de projetos de teses de graduação e pós-graduação, além de orientar teses de mestrado em Ciência Política, uma das quais já aprovada.
Quanto à participação em eventos, nesse período, cabe destacar, a nível da UnB, o seminário sobre "A perestroika: implicaçôes para a sociedade soviética e o sistema de relaç es internacionais", realizado em conjunto com a USP, a UFRJ e o Cebrade, como comentarista a um dos conferencistas soviéticos, em 1988, e no seminário "As perspectivas da Europa unificada e a integraçào latino-americana", promovido pelo Departamento de Ciência Política e o Instituto Goethe, em 1990, quando pronunciei conferência sobre "O desenvolvimento da economia mundial e a integração latino-americana". Fora da UnB, além de conferências e mesas redondas na UFRJ e na UERJ, em 1987, cabe mencionar a minha participação em seminários do ILDES, em São Paulo e no Rio, em 1988 e 1989, sobre tema de pesquisa que referirei adiante. No plano internacional, participei, em 1987, de seminário em Manágua sobre "Crise e alternativas da América Latina", patrocinado pela Frente Sandinista de Libertaçào Nacional, sendo o paper que ali apresentei - Democracia y socialismo - incluído no reading que, com trabalhos de Pablo González Casanova, Martha Harnecker e Tomás Vasconi e conservando o nome do seminário, se publicou em Montevidéu, no ano seguinte; e, em 1989, fiz uma conferência sobre a economia mundial e a integraçào latino-americana, na Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade de Buenos Aires.
No curso desse período, acentuou-se uma tendência que se fizera presente depois da minha volta ao Brasil e de que só recentemente tomei consciência, a qual é identificada com agudeza por Agustín Cueva, em seu ensaio já mencionado. Trata-se da substituição de atividades mais abertas, que buscam comunicação com um público mais amplo, visando a incidir no processo de formação de opinião, e que se expressam em livros, ensaios e artigos de alcance geral, por atividades de caráter mais especializado, circunscritas a grupos fechados, cuja forma de expressão natural é o relatório ou o paper, e que só eventualmente transcendem ao público, através de matérias jornalísticas (como a entrevista que me fez Emir Sader para a revista Senhor, em 1987, onde eu criticava a indústria brasileira, por sua falta de competitividade e seu parasitismo em relação ao Estado). Nesta linha, entre 1986 e 1989, realizei três pesquisas.
Com José Luís Homem da Costa e Rodrigo Cárcamo de Olmos, levei a cabo um estudo para o ILDES, cujo relatório, concluído em 1986, intitulou-seDesenvolvimento econômico, distribuição da renda e movimentos sociais no Brasil. Além de atualizar-me em relação à polêmica sobre a distribuição da renda, que teve lugar no Brasil na década de 1970, essa pesquisa levou-me à interessante constataçào de que a aceleraçào da concentraçào da renda, iniciada nos 60, perde força a fins dos 70 e princípios dos 80, por obra, a meu ver, do ascenso dos movimentos sociais que se registra, então, no país. O fortalecimento do bloco burguês, na chamada Nova República, a retraçào dos investimentos produtivos em proveito da especulaçào financeira e as ofensivas lançadas contra os trabalhadores -com destaque para os planos econômicos que se iniciam em 1986- reverteram, ao que tudo indica, essa tendência.
Ainda naquele ano, tendo o CNPq aprovado um projeto meu, relativo à indústria automobilística, dei início ao seu desenvolvimento, que me ocupou até 1989. Em 1987, apresentei relatório da primeira parte, com o nome de Crise e reconversão da indústria automobilística mundial, estando em processo o relatório final, que analisa o impacto disso no Brasil e que me permitiu conhecer melhor o desempenho de um setor-chave da economia nacional e suas relaç es financeiras e tecnológicas com os grandes centros. Convém observar que - dentro da política do CNPq de repartir os magros recursos de que disp e de maneira extremamente parcimoniosa, de tal maneira que, atendendo a muitos, não subvenciona nunca um projeto de maneira suficiente - vi-me forçado a modificar o plano inicial, que consistia em incluir na análise também o México e a Argentina, aproveitando meus contactos e meu conhecimento sobre esses países.
A terceira pesquisa, finalmente, deveu-se à iniciativa do ILDES no sentido de patrocinar um amplo estudo sobre o déficit público brasileiro, o qual integrou projetos de pesquisadores do Rio, de São Paulo e de Brasília -entre eles, Eduardo Suplicy, Paulo Sandroni, Maria Sílvia Bastos, Vitor Mereje, Theotônio dos Santos e Vania Bambirra. Nesse marco, tomei como tema a política de incentivos e subsídios à exportação de manufaturados, do que resultaram dois relatórios: um, preliminar, que estimava, de modo geral, o efeito desses incentivos e subsídios sobre o déficit público, intitulado A política de promoção às exportaçoes e o déficit público no Brasil, apresentado a fins de 1988; e outro, em que analisei em detalhe as políticas governamentais que deram origem origem à substituição de importaçoes, na década de 1950, a tentativa pós-64 de suprimi-las em favor da promoção ãs exportaçoes e, enfim, a combinação de ambas, principalmente após o choque do petróleo de 1973, o que resultou no protecionismo exacerbado e na sangria em grande escala de recursos públicos, em favor dos grupos empresariais privados -relatório este apresentado em 1989, com o título Estado, grupos econômicos e projetos políticos no Brasil, 1945-1988. É justo registrar aqui a dedicação que, em todas essas pesquisas, demonstrou minha assistente, Maria do Socorro F. Carvalho Branco, assim como Luciana de Amorim Nóbrega.
A carga de trabalho que essas pesquisas acarretaram, e que se somava a minhas atividades acadêmicas normais, foi sendo, aos poucos, percebida como um mecanismo de drenagem de minha vida intelectual, em favor de minha refuncionalização ao sistema científico-cultural vigente no país. De fato, ela implicava que as inquietaçôes e objetivos de pesquisa, derivados de minha própria trajetória de trabalho, assim como a seleção de temas de estudo a que ela tende, fossem deslocados do centro de minha ocupação principal, passando a receber um tratamento marginal, lento e penoso, quando recebiam algum. Uma virose que me acometeu em 1989, reduzindo minha capacidade de trabalho durante boa parte do ano, e as greves que agitaram então a UnB levaram-me a postergar a busca de uma solução ao problema, tanto mais que, em conseqüência das greves, o segundo semestre letivo daquele ano entrou 1990 adentro. Assim, recém em maio foi-me possível suspender minhas atividades acadêmicas, em função de licença sabática, para - renunciando também à busca de financiamento para meus projetos de pesquisa - dedicar-me a repor em seus trilhos minha vida intelectual. Este é o ponto em que me encontro.